MAN TGX é inspiração sobre rodas para carnavalesco

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A estrada é tranquila e uma fonte de inspiração quando Zé Glória “cai pra dentro” da boleia de seu MAN TGX rumo a qualquer lugar que o leve a versos de samba. Esse é o processo de criação de José Glória da Silva Filho, 63 anos, transportador nas horas de labuta e sambista nas horas de paixão, ganhador de diversos sambas-enredos de conhecidas escolas cariocas.

Ele confessa que precisa refugiar-se no silêncio de seu bruto, usado somente como “carro de passeio” para compor suas letras. Na cabine, gravador digital, caderno, caneta são itens de série de sua segunda vida como letrista. “Faço questão de estar sempre atualizado com o que há de melhor em tecnologia, porque quero ficar despreocupado quando pego a estrada para compor minhas músicas”, explica. A única coisa que ferve é a cabeça quando as rimas começam a escapar. Mesmo assim, o velho gravador, que enfeitava o caminhão, foi substituído pela versão de bolso que ganhou do parceiro de composições Arlindo Cruz, depois de muita insistência. 

Filho do caminhoneiro José e da lavadeira D. Araci, começou na lida aos 12 anos para ajudar em casa, entregando as roupas lavadas para as freguesas da mãe. Mas já fazia versos e assim não tardou a ganhar um concurso de poesia na escola e desde então não parou mais de escrever. Fez marchinhas para blocos de rua, para as folias de Momo e quando essa onda passou, vieram as escolas de samba. A estrada veio depois, bem depois do Flamengo, time do coração. Mas cabem outros: “Sou são-paulino e corintiano em São Paulo, por causa dos meus filhos, e tenho admiração pelo Santos porque meu pai era santista fanático”, detalha. Coração grande.

Sua afinidade com os caminhões começou em casa. “Meu pai tinha um Alfa Romeo barriga d’água (defeito de fabricação na fundição dos motores que provoca o vazamento de água para dentro do cárter), e pegava estrada com ele. Mais tarde, eu mesmo tive um, quando eu passava nas ruas com ele eu ouvia: ‘o que é que é isso?!’”. E desaba numa divertida gargalhada. “Uma vez o Alfa bateu, aí troquei o motor para um da Scania. Acabou o vazamento”. Tempo que já ficou para trás, antes de firmar seu ponto de honra com a marca Volkswagen, a quem se declara fiel. 

Tanto que, em sua transportadora, Katytw (fala-se Catitu, apelido de infância de Zé) Transportes, ele mantém dez unidades do modelo VW 24.280 com caçambas, mais um rebocador e seu TGX ‘passeio’ de três anos. Sua missão fora das escolas é transportar areia, brita, cimento e outros materiais para obras de construção, dentro e fora do Rio, onde vive. Ele tem funcionários para as entregas, mas quando um falta, não tem erro: “ele cai pra dentro da boleia”, sem pestanejar. 

E Zé Glória ainda tem outra atividade, uma empresa de manutenção de máquinas e plataformas de navios-sonda que atuam na prospecção de petróleo. Essa especialidade foi conquistada à custa de muito sofrimento, segundo ele. “Já morei em cingapura, China e países daquele canto do mundo fazendo manutenção nessas plataformas”, diz, meio triste. Mas passou. Nada é assim tão fácil, muito menos compor.

“Um dia eu estava fazendo um samba e não estava satisfeito. Quando eu estava sobre a Ponte Rio Niterói, vindo de Macaé, falei: “Ai meu Deus! A inspiração veio no ato.”  A imagem ficou gravada. Enquanto não consegue as palavras certas ele não sossega. “Filho feio não tem pai, não é?”, se diverte com o comentário. Para fazer samba-enredo bom é preciso estudar, pesquisar, ler muito, comenta Zé Glória. E essa missão envolve várias pessoas. 

Para acertar um samba é necessário ouvir opiniões. A letra, a melodia, o compasso às vezes são submetidos a pessoas nas ruas, nas esquinas. “A gente carrega um cavaquinho e um surdinho no caminhão, passa na frente de um colégio, por exemplo, e manda ver. O povo precisa gostar e o refrão tem que ser forte para encantar na avenida”.  Tanta paixão só poderia acabar na avenida. Zé Glória já foi tema de escola.

O local preferido para estudar é o leito da cabine do TGX. Tranquilidade total. O que mais o faz se sentir bem é o conforto, a qualidade do acabamento e a facilidade de ter todas as informações à mão. Quando surge uma inquietude ele corre para o seu caminhão. Deitado, ele lê, pesquisa, apura e vai gravando.

A composição vai tomando forma. Com a ideia na mão, é só deitar as rimas no papel. Depois é amarrar as pontas e fazer os ajustes com todos os envolvidos e trabalhar na melodia. “Não tem época para fazer samba. A gente compõe o ano todo. Agora mesmo estou planejando uma viagem para Goiás, Mato Grosso, a região do Pantanal, para ter novas inspirações”, confessa.

Mas nada de folgar com a segurança. Quando precisa anotar alguma coisa, ele para no acostamento com calma e então começa a gravar. E a manutenção preventiva é feita religiosamente a cada 15 000 km, na revenda onde comprou seu ‘carro de passeio’. “Nunca tive um acidente sequer com meu TGX. A minha quinta roda está intacta, nunca usei. Mas no lugar dela quero colocar uma de alumínio. Acho linda! No meu caminhão tenho as rodas traseiras em alumínio, mas as dianteiras são calotas, porque não consigo encontrar no mercado opções que sirvam”. 

Neste ano Zé Glória ganhou quatro composições para fazer. Ele integra o time de compositores das escolas Viradouro, Império Serrano Acadêmicos de Santa Cruz e Unidos de Bangu, todas do Grupo de Acesso das escolas cariocas, encomendas que renderam muito trabalho, mas com parceiros de primeira. “A Viradouro vem com tudo. Escute essa!”


Além da verde e branca, Mocidade Independente de Padre Miguel, Zé ganhou samba na Cubango em 2011, Império Serrano, 2015 e 2016; e Acadêmicos de Santa Cruz, em 2015 e 2016. Mas tem as escolas de samba menores também, que conseguiram campeonatos com sambas do compositor estradeiro, como a Inocentes de Belford Roxo, que subiu para o grupo especial em 2012; Unidos do Viradouro, campeã do acesso A, em 2014 e 2016; e a Unidos de Bangu, que conseguiu ir para o grupo de aceso A, também em 2014.  

Zé Glória encerra a divertida conversa com a seguinte informação: “Já viajei uns 40 000 km compondo. Isso só na estrada”. Enquanto isso ele planeja colocar uma carenagem especial, dessas que se veem na Fórmula Truck. “Já fui até o Sul atrás de empresas que fazem isso, até agora não encontrei porque é difícil fazer esse trabalho num caminhão trucado”. Fica a dica. Zé Glória, o que você pensa de tudo isso? “É doença!”, e ri.